Eu postei anteriormente uma tradução desse hino, o R̥V I.113 de Kutsa, que é um dos hinos mais populares à Uṣa (Aurora) e fui a retocando conforme os grupos que tenho com o GELIEA foram seguindo. Esses grupos ainda vão demorar um bom tempo para renderem uma publicação, em parte porque os três envolvidos não conseguem acreditar em nenhuma explicação ou interpretação que nós mesmos propondo (um encontro de céticos).

Eu queria pelo menos registrar aqui algumas das coisas que tenho pensado e como eu imagino que esse hino se encaixe no mundo, já que numa leitura solta dele parece muito difícil entender que tipo de experiência literária, poética ou o que seja ele pretendia produzir. Então vou propor um pequeno roteiro de leitura até uma parte.

Sugiro ouvir “Monday Morning in Lagos” que é um pouco a pilha.

Leitura “acompanhada”

Dentro do RV, esse hino está numa parte da coleção provavelmente composta mais para 1000 AEC do que 1500 AEC. O livro (maṇḍala) I é certamente mais novo que os livros II a VII (familiares) e que a maioria do VIII e IX, mas parece mais antigo que o X e pelo menos em parte o é. Muito provavelmente os poetas como o Kutsa vinham já de uma tradição muito bem estabelecida nessa altura de composição poética e por isso se pode imaginar também uma cultura de “apreciação” poética bem consolidada. As muitas sutilezas formais que não apenas eu ou os colegas do GELIEA mas a boa parte dos vedicistas acreditam estar em jogo provavelmente eram percebidas. Se não for esse o caso, essas sutilezas são ninharias fofas legadas pelo acaso e não deixam de ser divertidas.

Imagine que esse poema é recitado (mais provavelmente cantado) em um evento religioso de algum tipo, privado e pago por uma espécie de mecenas que financia os altares, comes e bebes (para pessoas e divindades, talvez), provavelmente animais para sacrifício, os cantores e a confecção dos poemas. O evento deveria durar algumas tantas horas e ser composto de vários momentos, incluindo as recitações de diversos hinos dedicados a um bom número de divindades. Imagine que um evento desses, começando na manhã, teria uma ótima justificativa, religiosa e performática, para começar com um hino à Aurora, que, quero crer, estava nessa altura despontando.

É comum nos hinos à Aurora ver um chamado ao aqui e agora, com advérbios, partículas, expletivas. E assim teria começado Kutsa, usando formas de aoristo (“a ação X acaba de ocorrer”) e demonstrativos. Veja lá:

idáṃ śréṣṭhaṃ jyótiṣāṃ jyótir ā́gāc citráḥ praketó ajaniṣṭa víbhvā |
yáthā prásūtā savitúḥ savā́yam̐ evā́ rā́trī uṣáse yónim āraik ||1|| > eis que esta mais bela luz das luzes chegou;
o luzente sinal nasceu com seu largo alcance.
tal como ela foi impelida pelo impulso de savitar,
a noite cedeu lugar no ventre para a aurora. ||1||

A estrofe mal acabou e Kutsa já brincou com a formação do nome do deus Savitar “o Impelidor” em prásūtā savitúḥ savā́yam̐ “impelida pelo impulso do impelidor”. Fica carregado em português e talvez em védico também ficasse, mas é um evento. Esse “tal como” talvez esteja mais para um “niquiqui”, mas é difícil. O que interessa é que ao alvorecer do dia, ainda com aquela sensação de metade dia metade noite, a ideia de que uma divindade está dando lugar a outra é cativante e vira logo o primeiro tema:

rúśadvatsā rúśatī śvetiyā́gād ā́raig u kr̥ṣṇā́ sádanāni asyāḥ |
samānábandhū amŕ̥te anūcī́ dyā́vā várṇaṃ carata āmināné ||2||

samānó ádhvā svásaror anantás tám anyā́nyā carato deváśiṣṭe |
ná methete ná tasthatuḥ suméke náktoṣā́sā sámanasā vírūpe ||3||

de ofuscante novilho a branca e ofuscante chegou,
por sua vez a negra cedeu os seus assentos para ela.
ambas compartilhando laços, imortais, se seguindo,
as duas abóbadas seguem trocando as cores. ||2||

a mesma estrada pertence a ambas irmãs, sem fim;
uma e outra seguem por ela instruídas pelo deus.
não se opõe uma à outra nem param embora firmes
a noite e aurora, concordes ainda que diversas. ||3||

Essa oposição começa um dos temas favoritos quando os poetas do RV vão falar da Aurora: uma brincadeira entre unidade e multiplicidade. Aqui, as coisas ainda são um tanto simples, há um par de irmãs, Noite e Aurora, que embora sejam bem diferentes e discordantes, são semelhantes. Nada especialmente esperto, mas bonitinho.

Mas a Noite é o que está já indo embora e quem acaba de chegar é a Aurora. As pessoas ali reunidas, imagino, logo cedo na matina, acordaram há pouco sob o pretexto de ir ver o ritual começar com a Aurora. Mas imagine também outras pessoas não necessariamente envolvidas ou talvez não convidadas para o evento tendo acordado logo cedo e começando a aparecer nas ruas, às vistas dos ouvintes dessa recitação.

bhã́svatī nayitrī́+ sūnŕ̥tānām áceti citrā́ ví dúro na āvaḥ |
prā́rpyā jágad ví u no rāyó akhyad uṣā́ ajīgar bhúvanāni víśvā ||4||

jihmaśíye cáritave maghónī ābhogáya iṣṭáye rāyá u tvam |
dabhrám páśyadbhya urviyā́ vicákṣa uṣā́ ajīgar bhúvanāni víśvā ||5||

kṣatrā́ya tvaṃ śrávase tvam mahīyā́ iṣṭáye tvam ártham iva tvam ityaí |
vísadr̥śā jīvitā́bhipracákṣa uṣā́ ajīgar bhúvanāni víśvā ||6||

a cheia de luz, líder dos agrados, apareceu
e cintilante abriu para nós as portas.
instigou o mundo e encontrou-nos a riqueza.
a aurora despertou todas as criaturas ||4||

magnânima, ao que jaz de costas para avançar
para o proveito, o outro para buscar riqueza
e aos que veem pouco para divisar a amplitude
a aurora despertou todas as criaturas. ||5||

um para o domínio, um para a glória, um para a grandeza
outro para ir em direção a qual seja seu objetivo,
para que se observe os distintos modos de viver
a aurora despertou todas as criaturas. ||6||

A ideia aqui é que a Aurora não parece ter brilhado apenas para um grupo de pessoas, mas para todos. Só que mesmo sendo um único começo do dia, esse começo vai trazer coisas diferentes para cada criatura, a depender de quem são, do que fazem e afins (óbvio, o mecenas que pagou uma fortuna pelo ritual espera ter algum lugar de destaque no mundo). Imagine de novo que há pessoas passando ao lado de onde esse ritual é conduzido e esse hino recitado, essa imagem dos muitos modos de vida cada um impelido pela deusa de modo específico mas geral fica muito mas muito bem encaixada.

eṣā́ divó duhitā́ práty adarśi viuchántī yuvatíḥ śukrávāsāḥ |
víśvasyéśānā pā́rthivasya vásva úṣo adyéhá subhage ví ucha ||7||

esta filha do céu apareceu a nossa frente
raiando amplamente, jovem, em vestes rútilas.
estando imbuída de todos os bens terrenos
aurora, aqui e agora, bem-dotada raie! ||7||

parāyatīnā́m ánu eti pā́tha āyatīnā́m prathamā́ śáśvatīnām |
viuchántī jīvám udīráyanti uṣā́ mr̥táṃ káṃ caná bodháyantī ||8||

ela vai seguindo o rebanho das que vão embora,
das que se aproximam de novo e de novo a primeira.
ao que ampla ela raiou, animou os seres vivos
a aurora sem nenhum morto fazer despertar. ||8||

úṣo yád agníṃ samídhe cakártha ví yád ā́vaś cákṣasā sū́riyasya |
yán mā́nuṣān yakṣyámāṇām̐ ájīgas tád devéṣu cakr̥ṣe bhadrám ápnaḥ ||9||

aurora, quando fizeste acender o fogo,
quando ampla raiaste com o olho do sol,
quando homens prontos para sacrifício acordaste,
fizestes para si entre os deuses distinta posse. ||9||

Essas três estrofes são difíceis de dar uma cena boa, mas parece fechar o tema da Aurora múltipla em relação à Noite e em relação às criaturas. Aparece brevemente o tema das múltiplas Auroras que vem uma depois da outra (estrofe 8), mas via de regra parece um bem bolado de elogios.

Chegamos no meio do hino e meu orientador não me deixaria falar nunca mais nada na vida se eu não falasse que meios de hino são um lugar especial. Talvez para dar uma noção de qual o tamanho do hino, talvez para criar alguma figura sofisticada, o fato é que os poetas do RV fazem algo na metade dos hinos. Nesse caso, ele se pergunta “em que ponto ela estará no meio do caminho?” Qual meio do caminho? Talvez o poema. Kutsa dá uma piscadela.

kíyāti ā́ yát samáyā bhávāti yā́ viūṣúr yā́ś ca nūnáṃ viuchā́n |
ánu pū́rvāḥ kr̥pate vāvaśānā́ pradī́dhyānā jóṣam anyā́bhir eti ||10||

em que ponto ela estará no meio do caminho
das que amplas raiaram e às que agora raiarão?
mugindo, às predecessoras sente falta,
mas assertiva vai com as outras ao prazer. ||10||

Daqui em diante vocês conseguem imaginar sozinhos a situação toda. E eu arranjei algo para fazer enquanto esperava uns emails. Boa leitura.

īyúṣ ṭé yé pū́rvatarām ápaśyan viuchántīm uṣásam mártiyāsaḥ |
asmā́bhir ū nú praticákṣiyābhūd ó té yanti yé aparī́ṣu páśyān ||11|
yāvayáddveṣā r̥tapā́ r̥tejā́ḥ sumnāvárī sūnŕ̥tā īráyantī |
sumaṅgalī́r bíbhratī devávītim ihā́dyóṣaḥ śréṣṭhatamā ví ucha ||12||
śáśvat puróṣā́ ví uvāsa devī́ átho adyédáṃ ví āvo maghónī |
átho ví uchād úttarām̐ ánu dyū́n ajárāmŕ̥tā carati svadhā́bhiḥ ||13||
ví añjíbhir divá ā́tāsu adyaud ápa kr̥ṣṇā́ṃ nirṇíjaṃ devī́ āvaḥ |
prabodháyantī aruṇébhir áśvair ā́ uṣā́ yāti suyújā ráthena ||14||
āváhantī póṣiyā vā́riyāṇi citráṃ ketúṃ kr̥ṇute cékitānā |
īyúṣīṇām upamā́ śáśvatīnāṃ vibhātīnā́m prathamóṣā́ ví aśvait ||15||
úd īrdhuvaṃ jīvó ásur na ā́gād ápa prā́gāt táma ā́ jyótir eti |
ā́raik pánthāṃ yā́tave sū́riyāya áganma yátra pratiránta ā́yuḥ ||16||
syū́manā vācá úd iyarti váhni stávāno rebhá uṣáso vibhātī́ḥ |
adyā́ tád ucha gr̥ṇaté maghoni asmé ā́yur ní didīhi prajā́vat ||17||
yā́ gómatīr uṣásaḥ sárvavīrā viuchánti dāśúṣe mártiyāya |
vāyór iva sūnŕ̥tānām udarké tā́ aśvadā́ aśnavat somasútvā ||18||
mātā́ devā́nām áditer ánīkaṃ yajñásya ketúr br̥hatī́ ví bhāhi |
praśastikŕ̥d bráhmaṇe no ví ucha ā́ no jáne janaya viśvavāre ||19||
yác citrám ápna uṣáso váhanti ījānā́ya śaśamānā́ya bhadrám |
tán no mitró váruṇo māmahantām áditiḥ síndhuḥ pr̥thivī́ utá dyaúḥo ||20||

foram embora os de outrora que as viram,
as auroras que amplas raiaram; foram-se, mortais
eis que agora por nós uma há para ser mirada,
e eis as que vem para no futuro serem vistas. ||11||

afasta-inimigos, guarda-verdade, nascida na verdade
graciosa, impelindo os agrados,
auspiciosa, carregando a busca pelos deuses
aqui e agora, aurora, raia ampla, esplêndida. ||12||

de novo e de novo outrora raiou ampla a deusa
e hoje ampla ela raiou de novo aqui, magnânima.
e ela há de raiar ampla de novo em dias futuros
invariável e imortal ela segue em seus modos. ||13||

com ornamentos às portas do céu ela luziu
a deusa afastou para longe o véu negro.
fazendo despertar com cavalos vermelhos,
a aurora vem aqui em carruagem bem acabada. ||14||

trazendo para cá as preciosas riquezas,
o sinal brilhante ela se fez ao aparecer
das que foram uma depois da outra a última,
a primeira das que hora raiam: a aurora alvoreceu. ||15||

levantai-vos! a força vivente veio a nós.
para longe foi a escuridão, chegou a luz!
ela deixou um caminho para o sol passar,
nós viemos aqui onde eles alongam a vida. ||16||

com rédeas de palavras, o condutor as excita;
o recitador louvado, as auroras que amplas raiam.
brilha então hoje, magnânima, para o cantor,
ilumina-nos uma vida cheia de descendentes. ||17||

às auroras que com vacas e com varões fortes
raiam amplas para o mortal que é piedoso,
quando no ressoar das alegrias como de Vāyu,
alcance elas que dão cavalos ele que prensa o soma. ||18||

a mãe dos deuses, o rosto de Aditi,
o sinal do sacrifício, imensa: ilumine tudo!
criadora de loas raia sobre a nossa recitação.
engendra-nos aqui entre as gentes, ó das riquezas. ||19||

o ganho brilhante que as auroras conduzem
para o sacrificante que obra, o auspício,
que ele nos concedam Mitra e Varuna,
Aditi, o Rio, a Terra e o Céu. ||20||