Tradução: Caio Borges Aguida Geraldes

Última atualização: 18 Ago 2020

Livro I (incompleto; 56/212)

Proêmio

Heródoto de Halicarnasso  apresenta sua investigação, para que não se acabem apagados com o tempo o que houve com os homens, nem os feitos imensos e impressionantes trazidos a cabo por gregos  e bárbaros acabem sem glória, e entre outras coisas, a razão pela qual guerrearam entre si.

1

(1) Pois bem, os persas  bem informados dizem terem sido os fenícios  os causadores da arenga. Foi que quando chegaram a este mar vindos do mar chamado Eritreu  e ocuparam a região onde ainda hoje vivem, logo se empenharam em fazer longas navegações e transportarem mercadorias egípcias  e assírias,  levando-as a todo canto, inclusive Argos.  (2) Essa terra de Argos  era em todos os aspectos a primeira dentre as demais do que agora se chama Grécia.  Assim que os fenícios  chegaram a Argos,  dispuseram a mercadoria à venda. (3) Cinco ou seis dias depois de chegarem, já tinham vendido quase tudo, quando vieram várias mulheres, dentre as quais a filha do rei. O nome dela era, de acordo também com o que dizem os gregos,  Io,  filha de Ínaco.  (4) Enquanto elas estavam perto da popa do navio, pechinchavam as mercadorias que lhes interessavam mais, no que os fenícios  deram ordens e se lançaram contra elas. A maioria das mulheres conseguiu escapar, mas junto a outras Io  foi raptada. Eles as enfiaram nos navios e partiram navegando em direção ao Egito. 

2

(1) Dizem os persas  que foi assim que Io  chegou ao Egito  — diferentemente dos gregos  — e que isso primeiro deu início às injustiças. Depois disso, eles dizem, alguns gregos  (e eles não tem como nos contar o nome) puseram pés na Tiro  fenícia e raptaram a filha do rei, Europa.  É possível que eles fossem de Creta.  Com isso, a situação tinha ficado elas por elas, mas depois os gregos  foram responsáveis por uma outra injustiça, (2) pois que eles navegaram em um grande navio rumo a Éa, na Cólquida,  subindo o rio Fásis,  e lá, depois de terminarem aquilo que tinham ido fazer, raptaram a filha do rei, Medéia.  (3) O rei dos colcos  por meio de um arauto que enviou à Grécia  pediu retribuição pelo rapto e reclamou a filha. Eles responderam que não lhes fora paga retribuição pelo rapto de Io,  a argiva, e que então eles é que não iriam lhes pagar.

3

(1) Em uma outra geração depois daquela, Alexandre, filho de Pría-mo, porque ouvira falar dessa história, passou a desejar obter uma mulher da Grécia  por meio de um rapto, acreditando completamente de que não teria que pagar retribuição, já que eles não haviam pagado. (2) Depois de ele ter raptado Helena,  os gregos  decidiram enviar mensageiros para reclamar Helena  e pedir retribuição pelo rapto. O outros, frente a essas alegações, trouxeram à tona contra eles o rapto de Medéia,  que eles, que não haviam pago a retribuição e nem a retornaram aos reclamantes, agora queriam que houvesse retribuição por parte dos outros.

4

(1) Até então só o que acontecera entre os dois foram raptos, mas contam que depois os gregos  se tornaram tanto mais culpados: começaram a enviar exércitos à Ásia  antes que os outros o fizessem à Europa.  (2) [Os persas] de fato [dizem] considerar o rapto de mulheres uma ação digna de homens injustos, mas que pôr-se às pressas para vingar as raptadas era algo digno de tolos, enquanto não dar nenhuma atenção ao fato das mulheres terem sido raptadas era digno de gente inteligente, pois que era claro que se elas não tivessem querido, não teriam sido raptadas. (3) Os persas  dizem que eles na Ásia  não deram nenhuma importância às mulheres raptadas, mas que os gregos  por causa da mulher lacedemônia reuniram armamentos, então foram à Ásia  e puseram abaixo o poder de Príamo.  (2) Desde então, os persas  sempre consideraram o povo grego seu inimigo. Os persas assumiam a Ásia  e os povos que lá habitavam como semelhantes e consideravam a Europa  e o povo grego como separados.

5

(1) Assim é como os persas  dizem ter se passado e eles assumem que foi com a tomada de Ílio  que começou sua inimizade com os gregos.  (2) Quanto ao que se passou com Io,  os fenícios  não concordam tanto assim, pois dizem que não foi se valendo de um rapto que eles a levaram à Ásia,  mas que em Argos  ela se envolveu com o capitão do navio. Depois que ela descobriu que estava grávida, com vergonha dos pais, assim dizem, por vontade própria ela navegou para longe com os fenícios,  para que não acabasse sendo descoberta.

(3) Bom, isso é o que os persas e fenícios  dizem. Quanto a isso eu não vou dizer se ocorreu dessa ou daquela maneira, mas, daquele que eu mesmo sei ter sido o primeiro a dar início às ações injustas contra os gregos, dele sim eu farei um relato e continuarei na sequência da discussão, a comentar igualmente cidades pequenas e grandes, (4) pois a maioria das que antes eram grandes tornou-se pequena e as que no meu tempo eram grandes, outrora foram pequenas. Sabendo que a fortuna humana não costuma permanecer no mesmo lugar, relembrarei de ambas igualmente.

6

(1) Creso  era do povo lídio,  filho de Aliates  e governante dos povos deste lado do rio Halis,  que nascido no sul, entre os sírios  e paflagônios,  segue contra o vento do norte em direção ao mar chamado Euxeno.  (2) Foi Creso  o primeiro bárbaro, do qual temos conhecimento, a submeter povos dos gregos  ao pagamento de imposto e se aliar a alguns deles. Submeteu os jônios  bem como eólios  e dórios  que tinham terras na Ásia  e se aliou aos lacedemônios.  (3) Antes do reinado de Creso,  todos os gregos  eram livres, mesmo com a expedição dos cimérios  que atacou a Jônia  antes de Creso,  posto que aquela não tinha almejado a submissão das cidades, mas o saque por meio de incursões.

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(1) A hegemonia, anteriormente dos Heraclidas,  passou à família de Creso,  os chamados Mermnadas,  da seguinte maneira. (2) Havia Candaules,  chamado de Mírsilo pelos gregos,  governante de Sardes  e descendente de Alceu filho de Héracles.  Agron, filho de Nino, filho de Belo, filho de Alceu, foi o primeiro heraclida a ser rei de Sardes.  Candaules,  filho de Mirso,  foi o último. (3) Aqueles que antes de Agron reinavam sobre essa terra eram os descendentes de Lido,  filho de Átis,  por conta de quem esse povo inteiro é chamado de lídio,  outrora chamado meônio. (4) Por conta de um oráculo, eles confiaram o reinado aos Heraclidas,  que descendiam da Escrava de Jardano  e de Héracles,  que então reinaram por vinte e duas gerações, por cento e cinco anos, cada filho recebendo o reinado do pai até Candaules  filho de Mirso. 

8

(1) O tal Candaules  havia se enamorado da sua própria mulher e, enamorado, a considerava ser de longe a mulher mais bela de todas. Tanto ele considerava isso que, — veja, havia entre seus lanceiros um certo Giges,  filho de Dáscilo, que lhe agradava especialmente —, Candaules,  que costumava conversar sobre os assuntos mais urgentes com Giges,  costumava sobretudo elogiar a aparência de sua mulher a ele. (2) E porque estava fadado que as coisas iam correr mal para Candaules,  não muito tempo depois ele disse a Giges  o seguinte: “Giges,  não me parece que você acredita em mim quando falo sobre a aparência de minha mulher (nos ouvidos os homens não crêem tanto quanto nos olhos), então faça algo para que a espie nua.” (3) Ele disse num grito: “Senhor, que coisa descabida você diz, me ordenando espiar minha senhora nua. Uma mulher de cuja roupa despiu despiu-se também da vergonha! (4) Há muito coisas belas foram descobertas pelos homens pelas quais é necessário aprender, e o seguinte está entre elas: cada qual deve observar o que é seu. Eu acredito que ela seja a mais bela das mulheres, mas lhe peço que não me peça coisas erradas.”

9

(1) Ele dizia coisas tais para escapar, morrendo de medo que lhe acontecesse algo de ruim por causa disso tudo, ao que ele lhe respondeu assim: “Coragem, Giges,  e não tenha medo de mim como se eu dissesse essas coisas para lhe testar, nem tema a minha mulher e que dela lhe venha alguma represália, pois vou planejar de cabo a rabo um jeito com o qual ela sequer saiba que foi vista por você. (2) Veja, eu vou lhe pôr dentro do quarto em que dormimos, atrás da porta entreaberta e, depois que eu tiver entrado, ela também vai se dirigir à cama. Ali perto da entrada há um banco, sobre o qual ela vai colocar as roupas uma de cada vez conforme ela se despir e, com toda a paz, você poderá espiá-la. (3) Quando ela se voltar do banco em direção à cama e você estiver com ela de costas pra você, tome o cuidado nesse momento para que ela não lhe veja de saída.”

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(1) E como Giges  não conseguiu se safar, ele se preparou. Candaules,  quando achou que já era a hora de cama, levou Giges  para dentro do quarto e logo depois sua mulher chegou. Ela entrou e tirou a roupa, enquanto Giges  a espiava. (2) Quando a mulher deu as costas a ele, indo em direção à cama, ele saiu furtivamente de lá correndo. Só que a mulher o viu de canto de olho enquanto saía. Mesmo sabendo o que seu homem tinha feito, ela nem gritou por causa da vergonha, nem deixou transparecer que sabia, pensando que faria Candaules  pagar. (3) Até porque entre os lídios,  e também entre boa parte dos bárbaros, até mesmo um homem ser visto nu traz-lhe grande vergonha.

11

(1) Naquela noite ela não deixou transparecer nada e manteve silêncio, mas assim que raiou o dia, aprontou aqueles que entre os servos lhe eram mais fiéis e convocou Giges.  Ele, por sua vez, achando que ela não sabia nada do que se passara, foi ao chamado, pois já costumava se apresentar sempre que chamado pela rainha. (2) Quando Giges  chegou, ela lhe disse: “Você tem dois caminhos pela frente, Giges,  e eu lhe permito escolher qual deles você prefere seguir: ou você mata Candaules  e obtém a mim e ao reino dos lídios,  ou você terá de morrer agora, para que não vá em outro momento obedecer Candaules  e ver o que não deve. (3) Mas veja lá, ou aquele que quis fazer isso tem que morrer, ou você, que me viu nua e fez aquilo que não é certo.” Giges  ficou um tempo em choque até que passou a implorar que ela não o pusesse na obrigação de tomar uma decisão assim. (4) Não a convenceu e viu por fim que estava já decidido que era necessário que o senhor dele morresse ou ele mesmo morresse pela mão de outros. Escolheu ele mesmo viver e declarou dizendo assim: “Já que você me obriga matar meu senhor a contragosto, diga que eu escuto, de que maneira vamos atacá-lo?” (5) Ela respondeu: “O ataque ocorrerá no mesmo lugar em que ele me mostrou nua. O atentado ocorrerá enquanto ele dorme.”

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(1) Já haviam tramado o plano, quando, chegada a noite (pois Giges  não tinha se safado e nem havia saída alguma, mas ou ele ou Candaules  teriam que morrer), ele seguiu a mulher para o quarto. Ela lhe deu um punhal e o escondeu atrás daquela mesma porta. (2) Mais tarde, quando Candaules  se recolheu, saindo furtivamente do esconderijo, Giges  o matou e obteve para si a mulher e o reinado, sobre o que Arquíloco de Paros,  nascido tempos depois desse acontecimento, relembrou em trímetros jâmbicos.

13

(1) Giges  obteve o reinado, confirmado pelo oráculo de Delfos.  Pois os lídios  consideraram terrível o que sofrera Candaules  e já estavam em armas mas chegara-se a um acordo entre os apoiadores de Giges  e os demais lídios,  de que se o oráculo o apontasse como rei dos lídios,  ele reinaria, caso o contrário, retornaria o governo de volta aos Heraclidas.  (2) O oráculo o apontou e assim Giges  assumiu o reino. No entanto, a isso adicionou a Pítia  que haveria retaliação a favor dos Heraclidas  na quinta descendência de Giges.  Ao conteúdo dessa fala nem os lídios  nem os reis deram atenção alguma até que se tivesse cumprido.

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(1) Assim o reinado passou para os Mermnadas  que o tomaram dos Heraclidas.  E Giges,  porque tornara-se o regente, enviou oferendas votivas a Delfos  e não poucas, mas de todas as oferendas de prata em Delfos,  a maioria é dele, e além da prata, dedicou um sem-fim de ouro, parte do qual é sobretudo digna de nota: seis vasos de ouro foram consagradas. (2) Elas fazem parte do tesouro coríntio e tem o peso de trinta talentos. A bem da verdade, o tesouro não pertence ao povo coríntio,  mas a Cípselo  filho de Êtíon.  Giges  é assim o primeiro dos bárbaros que conhecemos a dedicar oferendas votivas em Delfos  depois de Midas  filho de Górdias,  rei dos Frígios.  (3) Afinal, também Midas  dedicara seu assento real, sobre o qual sentava-se para dar julgamentos, coisa digna de se ver. O trono hoje está bem no meio das vasos de Giges.  O ouro e prata que Giges  dedicou eram chamados pela gente de Delfos  de “Gígicos” por conta do nome do doador. (4) Além disso tudo, uma vez no governo, lançou expedições contra Mileto  e Esmirna  e tomou a cidade de Colofon,  mas nenhum feito mais de grandioso se deu durante seu reinado de trinta e oito anos, de modo que vamos nos omitir de mencioná-las.

15

Já sobre o reinado posterior ao de Giges,  o de Árdis,  filho de Giges,  farei alguma menção. Ele tomou Priene  e enviou expedições a Mileto  e, durante sua regência de Sardes,  os cimérios,  expulsados de suas terras habituais pelos nômades citas,  chegaram à Ásia  e tomaram Sardes  inteira salvo a acrópole.

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(1) Árdis  reinou por quarenta e nove anos, sucedeu-lhe Sadiates,  filho de Árdis,  que reinou por vinte anos, e Aliates  filho de Sadiates o sucedeu. Esse último guerreou contra Quiaxares,  descentente de Deioces, e contra a Média  e expulsou os cimérios  da Ásia  e tomou Esmirna  fundada em Colofon  e lançou expedições às Clazomenas.  Sobre esse assunto, as coisas não acabaram como ele esperava, pelo contrário, sofreu uma grande derrota. De todo modo há ainda estes outros feitos que ele realizou enquanto no governo muito dignos de se relatar.

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(1) Guerreava contra Mileto  porque herdara a guerra do pai. Veja, a maneira com que invadia e fazia o cerco de Mileto  era a seguinte: exatamente quando a plantação já estava pronta para a colheita nos campos, enviava a expedição, que marchava ao som de flautas de pan, cordas e aulos altos e graves. (2) Quando alcançava a região milésia,  não destruía, queimava ou arrombava as portas das moradias do campo, mas as deixava em pé e intactas. Os pomares e plantações da terra, por sua vez, ele só os abandonava depois que os tivesse posto abaixo. Acontece que os milésios  tinham domínio naval, então o cerco não era negócio para o exército. O lídio  não destruía as moradias pelo seguinte: os milésios,  enquanto ocupassem lá, teriam como semear e trabalhar a terra, e enquanto eles trabalhassem, ele teria algo para pilhar com as campanhas.

18

(1) Assim guerreava durante onze anos, durante os quais os milésios sofreram duas grandes derrotas quando batalharam em seu próprio território, uma no Limeneio  e a outra na planície do Meandro.  (2) Durante seis dos onze anos Sadiates  filho de Árdis  ainda era rei da Lídia,  ele que enviava campanhas de ano em ano contra a Milésia — afinal, ele tinha começado a guerra. Nos seis anos que se seguiram, Aliates  filho de Sadiates  foi quem batalhou, ele que herdara, tal como já deixei claro, a guerra do pai, e a ela se dedicava vigorosamente. (3) Nenhum jônio  se apresentou para ajudar os milésios  nessa guerra, apenas e tão somente os de Quios.  Eles honravam em retribuição feito similar, porque os milésios anteriormente se envolveram na guerra dos Quios contra os Eritréios. 

19

(1) No décimo segundo ano, quando a colheita estava sendo incendiada pela campanha Lídia,  ocorreu um problema: tão logo a colheita se incendiou, um vento forte fez incendiar o templo de Atena  (conhecida por a Atena  de Assesos) . (2) Naquelas tantas, não se falou muito nisso, mas depois que a expedição voltou a Sardes,  Aliates  adoeceu. Como sua doença piorava muito, enviou uma comitiva oracular a Delfos,  ou porque fora aconselhado por alguém, ou porque ele mesmo decidira enviar alguém para interrogar o deus sobre a doença. (3) Quando chegaram, a Pítia  lhes negou a consulta até que reerguessem o templo de Atena  que haviam queimado em Assesos  do território milésio. 

20

Eu sei que foi assim que as coisas ocorreram porque o ouvi da gente de Delfos.  Os milésios  acrescentam o seguinte: que Periandro,  que era filho de Cípselo,  era um estrangeiro bem cotado por Trasíbulo,  então governante de Mileto  e como ouvira falar do oráculo dado a Aliates,  enviou ao governante um mensageiro para lhe atualizar, para que, sabendo de antemão, pudesse decidir o que fazer em relação ao que vinha.

21

(1) Isso é o que dizem os milésios.  Enquanto isso, Aliates,  assim que lhe foram passadas as notícias, enviou um emissário a Mileto  pois desejava fazer um trato com Trasíbulo  e com os milésios para o tempo durante o qual estivesse reconstruindo o templo. O embaixador estava a caminho de Mileto,  quando Trasíbulo,  informado de tudo e ciente do que Aliates  pretendia fazer, fez um plano. (2) Toda comida que houvesse na cidade, de sua propriedade ou dos cidadãos, ele a reuniu na ágora e ordenou aos milésios  que, assim que ele desse o sinal, todos bebessem e fizessem uma folia entre eles.

22

(1) Assim o fez e deu essa ordem pelo seguinte: o emissário de Sardes,  quando visse a pilha imensa de comida despejada e os homens no bem bom, o reportaria a Aliates.  E assim foi. O emissário viu isso tudo, reportou a Trasíbulo  a mensagem do rei lídio  e retornou a Sardes.  Pelo que eu soube, a trégua não teve outra razão. (3) Isso porque Aliates  esperava que houvesse uma fome avassaladora em Mileto  e que o povo estivesse já exaurido no mais extremo sofrimento e ouviu do emissário que retornara de Mileto  exatamente o oposto do que ele imaginava. (4) Depois, a trégua foi estabelecida entre eles, segundo a qual eles seriam nações amigas e aliados; Aliates  construiu não um, mas dois templos a Atenas em Assesos  e curou-se de sua doença. Assim foi a guerra de Aliates  contra os milésios e Trasíbulo. 

23

Havia um tal Periandro,  filho de Cípselo,  aquele que deu notícia do oráculo a Trasíbulo,  governante de Corinto.  Os coríntios  dizem — e os lésbios  confirmam — que durante a vida dele algo bem surpreendente aconteceu: Arion  de Metimna  foi carregado por um golfinho a Tênaro,  ele que era o citaredo que não ficava atrás de nenhum dos de seu tempo, que tinha sido o primeiro dos homens de que temos notícia a compor um ditirambo, e que aliás o nomeara, e o apresentara a Corinto. 

24

(1) Dizem que esse Arion,  que passava a maior parte do seu tempo com Periandro,  um dia decidiu ir à Itália  e à Sicília.  Depois de ter conseguido um monte de dinheiro, quis ir de volta para Corinto.  (2) Zarpou de Tarento,  onde, porque confiava apenas e tão somente em coríntios,  contratou um navio com homens coríntios. Já em mar aberto, esses tiveram a ideia de se livrar dele e ficar com o dinheiro. Ele, quando soube, foi implorar, dizendo que deixaria o dinheiro a eles, clamando por sua vida. (3) Não os persuadiu de jeito algum, pelo contrário, os balseiros o ordenaram se matar por conta própria, se fosse para ter um túmulo em terra, ou se lançar o quanto antes ao mar. (4) Arion  estava encurralado e pediu, já que eles estavam tão decididos, que permitissem que ele cantasse em pé sobre as bancadas todo paramentado e prometeu que ele mesmo daria um fim nele depois que cantasse. (5) E porque lhes seria um prazer ouvir o melhor cantor entre os homens, [permitiram e] foram da popa até o meio do navio. Ele então vestiu toda a paramenta e pegou a cítara, ficou em pé nas bancadas e tocou até o fim uma toada aguda. Quando acabou a toada, lançou a si próprio no mar, tal como estava, todo paramentado. (6) E enquanto eles seguiram navegando a Corinto,  um golfinho — segundo dizem — o pegou e carregou até Tênaro.  Desembarcando, ele correu para Corinto  todo paramentado e lá chegando relatou tudo que ocorrera. (7) Periandro  por desconfiança mandou manter Arion  sob segurança e que ele não fosse a lugar nenhum, enquanto ele ficaria atento pros balseiros. Quando eles enfim chegaram, foram convocados e interrogados se teriam algo a dizer sobre Arion.  Enquando eles diziam que ele estava são e salvo na Itália e que eles o deixaram bem em Tarento,  Arion  apareceu na frente deles, como ele estava quando se lançou no mar. No espanto em que estavam, não tinham mais como negar a acusação. (8) Isso é o que dizem coríntios  e lésbios,  e hoje há uma estátua de bronze não muito grande dedicada a Arion  em Tênaro,  um homem montado sobre um golfinho.

25

(1) O lídio Aliates  tocou a guerra contra os milésios  e depois morreu, tendo reinado por cinquenta e sete anos. (2) Ele mesmo foi o segundo de sua casa a dedicar, porque escapara da doença, um grande vaso de prata em um suporte feito de ferro soldado, entre todas as dedicatórias em Delfos  algo digno de se ver, arte de Glauco de Quios,  que entre todos homens fora quem descobriu a soldagem de ferro.

26

(1) Depois que Aliates  morreu, Creso,  filho de Aliates, recebeu o reinado, quando tinha trinta e cinco anos de idade, ele que foi o primeiro a atacar os efésios.  Nessa ocasião, os efésios,  estando sob o cerco dele, dedicaram a cidade a Ártemis,  amarrando um fio do templo à muralha (há sete estádios entre a cidade antiga, que então era cercada, e o templo). (3) Creso  os atacou primeiro e depois um de cada vez atacou cada uma da cidade dos jônios  e dos eólios,  apresentando para cada investida uma causa diferente. Quando ele conseguia descobrir uma boa causa, justificava-se com uma boa causa, mas, quando não, ainda assim apresentava alguma ninharia.

27

(1) Bom, quando todos os gregos  da Ásia  já estavam submetidos a ele pelo pagamento de imposto, decidiu construir navios para lançar um ataque aos ilhéus. (2) Quando já estava tudo pronto para a construção naval, dizem que um certo Bias de Priene  (outros dizem ter sido Pítaco de Mitilene) chegou a Sardes.  Creso  lhe interrogou se havia alguma novidade da Grécia  e o que ele disse fez parar completamente a construção naval: “Rei, os ilhéus estão comprando conjuntamente um sem número de cavalos, pretendendo marchar conta Sardes  e contra ti.” Como Creso  acreditava que ele dizia a verdade, falou: “Ah se os deus botassem uma coisa dessas na cabeça dos ilhéus, ir contra os filhos da Lídia  com cavalos!” (4) Ao que o outro respondeu: “Rei, me parece que você roga zelosamente pela chance de pegar os ilhéus a cavalo no continente, e acredito que o faz com razão. Mas veja, pelo quê que você pensa que os ilhéus rogaram logo que souberam que você estava para construir navios contra eles, se não pegar os lídios  boiando no mar, de modo a lhe fazer pagar pelos gregos  que vivem no continente, aqueles que você subjugou?” (5) Creso  se agradou muito com o discurso e, porque achou que falava de maneira bem adequada, concordou em parar a construção naval. E foi assim que estabeleceu uma relação de amizade com os jônios  que moravam nas ilhas.

28

Passado o tempo e submetidos quase todos os povos a oeste do Halis,  salvo apenas os cilícios  e lícios,  todos os demais povos Creso  tinha submetido a ele. Eram eles: lídios,  frígios,  mísios,  mariandinos,  calíbios, paflagônios,  trácios da Tina e Bitínia, cários, jônios,  dórios,  eólios  e panfílios. 

29

(1) Uma vez submetidos esses territórios e tendo Creso  os anexado à Lídia;  em Sardes,  que estava no auge de sua riqueza, chegava tudo quanto era sábio da Grécia  que naquele tempo vivia. Toda hora chegava um deles, dentre os quais Sólon, o ateniense.  Ele havia criado as leis por requisição dos atenienses  e passara dez anos fora de sua terra, sob a desculpa de ter partido em viagem para ver o mundo. Em verdade, era para que não fosse obrigado a rescindir uma das leis que instituíra. (2) Isso porque os atenienses  por si próprios não podiam fazê-lo, posto que estavam restitos sob grandes juramentos segundo os quais viveriam por dez anos de acordo com quaisquer leis que Sólon  tivesse instituído.

30

(1) Por essas razões e para ver o mundo, Sólon  viajou para longe de casa, indo até Amásis  no Egito  e então até Creso  em Sardes . Quando chegou lá, foi hospedado por Creso  na corte. Depois, no terceiro ou quatro dia, por ordem de Creso,  os pagens levaram Sólon  para uma visita aos tesouros e o mostraram como era tudo imenso e rico. (2) Quando ele tinha visto e examinado, num momento que lhe pareceu oportuno, Creso  lhe perguntou: “Estrangeiro ateniense, tem-se ouvido falar muito por aqui, por causa de sua sabedoria e de sua errância, de que você, amando o conhecimento, a muitas terras foi a fim de ver o mundo. E por isso me vem um desejo agora de lhe perguntar se você já conheceu o homem mais afortunado de todos.” (3) Ele perguntou essas coisas acreditando ele mesmo ser o mais afortunado dos homens, mas Sólon  não o bajulou e se ateve aos fatos quando disse: “Sim, rei, Télo  de Atenas.” (4) Creso  foi surpreendido com o que foi dito e perguntou com animosidade: “E por que razão você considera Télo o mais afortunado?” E ele disse: “Télo, uma pessoa próspera de sua cidade, teve filhos bons e belos e viu nascerem crianças de todos eles e todas elas vingarem. Teve a vida também próspera pros nossos padrões e o fim de sua vida se deu radiantemente. (5) Porque ele prestou em auxílio quando a guerra eclodiu entre os atenienses e os seus vizinhos em Elêusis,  fez o inimigo bater em retirada e morreu belamente. Os atenienses lhe deram um enterro público bem onde caíra e o honraram imensamente.”

31

(1) Como Sólon  tinha atiçado Creso  falando da variada fortuna de Télo,  ele perguntou se acaso conheceria o segundo lugar depois dele, crente de que ao menos levaria o segundo lugar. (2) Ele respondeu: “Cleóbis  e Bíton. Pois esses dois, que eram de origem Argiva,  tinham acesso a posses o suficiente e, além disso, uma força física tal, que não apenas eram ambos igualmente premiados nos esportes, mas se conta a seguinte história sobre eles: Um dia, chegado entre os Argivos  o festival de Hera,  a mãe deles precisou tomar o carro de bois para ir ao templo, mas os seus bois não tinham chegado a tempo do campo. Como estavam apertados de tempo, os jovens se puseram às pressas sobre o laço do jugo e puxaram a carreta sobre a qual era levada sua mãe. Após cruzarem quarenta e cinco estádios, chegaram ao templo. (3) Depois de terem feito isso, frente aos olhos de toda a romaria, chegou-lhes o fim virtuoso da vida: neles o deus fez mostrar que é melhor aos homens morrer do que viver. Pois veja, os homens argivos lhes rodeando cumprimentavam a força dos jovens enquanto as mulheres argivas, a mãe deles, que tais garotos criara. (4) A mãe, extremamente contente com o feito e com a fama deles, posta de pé em frente à estátua, pediu que a seus meninos, a Cléobis e Bíton,  que muito a haviam honrado, que a deusa lhes desse aquilo que havia de ser o melhor para os homens. (5) Depois dessa prece, quando já haviam sacrificado e banqueteado, os jovens dormiram no templo e não mais levantaram, mas chegaram ao fim. Os Argivos  lhes fizeram estátuas as quais dedicaram em Delfos,  porque tinham sido homens virtuosos.”

32

(1) Sólon  concedeu a eles a segunda posição da boa fortuna, o que fez Creso  se irritar e dizer: “Estrangeiro ateniense! A nossa boa fortuna é rechaçada de tal maneira por você a ponto de você sequer nos tomar por dignos como homens comuns?” Ao que respondeu: “Creso,  a mim, que sei que o divino é de todo invejoso e perturbador, tu perguntas sobre as coisas humanas. (2) Vê, ao longo da vida, muitas coisas que não se quer há de se ver, muitas outras de se passar. Eu tomo como limite da vida humana os setenta anos. (3) Esses anos totalizam 25.200 dias, sem contar os meses intercalares. Se você incluir bienalmente mais um mês aos anos, de modo que as estações se distribuam ocorrendo quando se deve, então temos ao longo dos setenta anos, trinta e cinco meses intercalares e, desses meses, 1.050 dias. (4) De todos esses dias que totalizam setenta anos, isto é, 26.250 dias, nenhum deles traz algo exatamente igual ao que trouxe o outro. Assim, Creso,  um humano é total acaso. (5) Tu me pareces ser muito rico e rei de muitas gentes, mas o que me perguntaste eu não posso te dizer antes que tenha ouvido que terminaste belamente o período da vida. Pois o muito rico não terá sido mais afortunado que aquele que tem para o dia, se não lhe houver a sorte de chegar ao fim da vida com tudo certo. Muitos homens riquíssimos são desafortunados enquanto muitos que tem a riqueza contada são sortudos. (6) O homem muito rico porém desafortunado apenas tem duas vantagens em relação ao sortudo, enquanto o outro tem sobre o rico desafortunado várias: o primeiro é mais capaz de realizar seus desejos e suportar um grande revés, e essas são as vantagens que tem sobre o outro; o último, por sua vez não é capaz de suportar igualmente desejos e revezes, mas sua sorte os afasta dele e ele é livre de doenças, não é acometido por males, tem bons filhos e uma boa imagem. (7) Se, além disso tudo, ele ainda terminar bem a vida, este é quem tu procuras, alguém digno de ser chamado de afortunado. Mas antes que ele chegue ao fim, evita chamá-lo de afortunado, chama-o de sortudo. (8) É impossível, enfim, que alguém sendo um homem consiga obter todas essas coisas juntas: nenhum território é completamente autossuficiente naquilo que produz. Pelo contrário, cada um tem algumas coisas e depende de outras, e aquele que tem a maioria é o melhor. Tal e qual é a pessoa humana. Não é em nada autossuficiente, mas tem algumas coisas e necessita de outras. (9) Quem quer que deles cruze a vida tendo a maioria das coisas e enfim chegue ao término da vida com boa graça, ele sim me parecerá, ó Rei, digno de levar esse nome. (…)

33

(…) É preciso que se observe como chega o fim de todo evento, pois a muita gente os deuses prometem a fortuna e depois lhes arrancam até a raiz.” Nada disso agradou Creso,  que lhe dispensou sem dar mais palavra a ele, certo de que ele era de todo um tolo, que ignorando as coisas boas presentes, mandava olhar para o fim de todo evento.

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(1) Depois que Sólon partiu, uma grande catástrofe vinda do deus tomou de assalto Creso  — ao que se pode imaginar — porque se considerava ele mesmo o mais afortunado de todos os homens. Logo depois, desceu-lhe enquanto dormia um sonho que lhe mostrou a verdade dos males que vinham cair sobre seu filho. (2) Creso  tinha dois filhos, dos quais o primeiro era incapacitado porque era surdo enquanto o outro era em todos os aspectos o primeiro em grandeza entre os da sua idade. Seu nome era Átis . Foi Átis que a Creso o sonho mostrou que morreria ferido por uma lança de ferro. (3) E depois que levantou e pensou sobre o assunto, Creso, tomado de medo pelo sonho, primeiro arranjou uma mulher para o filho. Depois, embora acostumado a liderar os lídios em batalha, Creso deixou de enviá-lo para qualquer coisa do gênero e fez com que as setas e lanças e todas as coisas que os homens usavam na guerra fossem retiradas da casinha dos homens e guardada em quartos, não fosse algo pendurado cair em seu filho.

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(1) Enquanto estava ocupado com os preparos do casamento do filho, chegou a Sardes  um homem marcado pelo infortúnio e não purificado de um assassinato, homem de nacionalidade Frígia  e de família real. Assim que chegou, foi até a moradia de Creso , pediu-lhe conforme as práticas locais a graça da purificação e Creso lhe purificou. (2) Aliás, é muito semelhante a purificação entre os lídios e os gregos. Depois de proceder tal como era de costume, Creso inquiriu de onde vinha e quem era, dizendo o seguinte: (3) “Homem, quem é você e de que parte da Frígia você veio para estar aqui em meu lar? E que homem ou mulher você matou?” Ele respondeu: “Rei, sou filho de Górdias filho de Midas,  me chamo Adrasto,  e, porque matei, por acidente, meu irmão, aqui estou, visto que fui exilado pelo meu pai e destituído de tudo que tinha.” (4) Creso lhe respondeu: “Acontece que você é descendente de homens amigos e então vem como amigo. Aqui você poderá viver sem qualquer preocupação ficando em nossa casa. Quanto àquele infortúnio, você tirará mais proveito se levá-lo o mais levemente o possível.”

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(1) Adrasto  passou a viver na casa de Creso.  Nessa época, um javali imenso, coisa impressionante, apareceu no monte Olimpo da Mísia.  Ele tinha descido daquela montanha e estava destruindo os campos dos Mísios.  Diversas vezes os Mísios avançaram contra ele sem conseguir lhe causar nenhum dano, mas sofrendo muitos dele. (2) Por fim, foram ter com Creso mensageiros dos Mísios, que disseram o seguinte: “Rei, um javali absurdamente imenso apareceu em nossa terra e tem destruído nossos campos. Por mais tenhamos nos esforçado para capturá-lo, não conseguimos. Viemos agora lhe implorar que você nos envie seu filho, jovens escolhidos e cães, para que possamos expulsá-lo de nossa terra. (3) Ao que pediram, Creso, se lembrando do sonho, disse palavras assim: “Não me peçam mais pelo meu filho, pois não o vou lhes enviar, afinal, ele acaba de se casar e está preocupado com isso. Mas vejam, homens lídios escolhidos a dedo e toda a matilha eu vou enviar com ordens a todos que forem de serem extremamente empenhados em junto a vocês expulsar a criatura da terra.”

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(1) Assim respondeu. Os Mísios  se deram por satisfeitos, mas o filho de Creso,  que ouvira o que os Mísios pediram, entrou. Porque Creso disse que não enviaria seu filho para eles, o jovem lhe disse o seguinte: (2) “Pai, antigamente era extremamente belo e digno de honra entre nós ir à guerra e à caça e lá se destacar. Agora de ambas as coisas você tem me excluído embora você não tenha visto nenhuma covardice ou falta de ímpeto da minha parte. E então com que cara eu vou ir para ágora e voltar da ágora?” (3) Que tipo de pessoa eu vou parecer ser pros cidadãos? Que tipo de pessoa vou parecer para minha recém-casada esposa? Com que tipo de homem ela vai pensar que vive? Ou você me envia agora contra a fera ou me convença com razões de que com isso você faz o melhor para mim.”

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(1) Creso  respondeu: “Filho, não é porque vi em você covardia ou falta de alguma outra qualidade que faço isso, mas porque a mim desceu a visão de um sonho quando dormia que me disse que você viveria pouco tempo pois morreria por uma lança de ferro. (2) Foi por causa dessa visão que eu corri com o seu casamento e não lhe envio para as tarefas, mantendo-lhe sob segurança para que eu possa em vida lhe roubar da morte. Afinal, você é meu único filho, já que o outro, sendo deficiente de audição, eu sequer considero existir.”

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(1) O jovem disse o seguinte: “Pai, você tem uma justificativa, tendo visto uma tal visão, para me manter sob guarda. Mas aquilo que você não entendeu e que lhe passou batido, é meu direito explicar. (2) Você diz que o sonho lhe mostrou que eu chegaria ao meu fim por causa de uma lança de ferro. Mas onde estão as mãos de um javali? Onde está a lança de ferro que você teme? Veja, se tivesse sido dito a ti que eu chegaria ao fim por causa de presas ou qualquer coisa assim, seria necessário que você fizesse o que faz. No entanto seria por causa de uma lança: já que não teremos uma luta contra homens, me envie!”

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Creso  responde: “Filho, você me venceu mostrando sua interpretação do sonho. Já que fui vencido por você, mudo de ideia e lhe permito ir para a caça.”

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(1) Depois que Creso  disse isso, mandou chamar o frígio Adrasto,  a quem ao chegar disse: “Adrasto, quando você foi acometido por uma horrível desgraça, da qual eu não lhe culpo, fui eu quem lhe purificou e recebi em casa, provendo-lhe de todas as despesas. (2) Agora, porque você deve me retribuir o serviço que diz a ti com serviços a mim, peço que você seja o segurança do meu filho que parte para a caça, para que nenhum ladrão malvado vos encontre com más intenções. (3) Além do mais, é importante que você vá para onde possa ganhar renome com seus feitos e porque também você é digno de ser filho do seu pai e tem força o suficiente.”

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(1) Respondeu Adrasto: “Rei, fosse outra circunstância eu não iria para uma empreitada dessas, já que nem tenho o tipo de sorte para ser razoável que eu vá junto de camaradas bem-aventurados e nem é do meu interesse, por razões várias que guardo para mim. (2) Agora, já que você me convoca e é necessário que eu lhe agrade (afinal lhe devo retribuir com trabalhos), estou pronto para fazê-lo e, quanto ao seu filho, que você me ordena proteger, espera que voltará até você incólume no que depender de seu segurança.

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(1) Assim ele respondeu a Creso  e depois disso partiram acompanhados de jovens escolhidos a dedo e cães. Quando chegaram ao monte Olimpo , procuraram pela criatura, encontraram-na, envolveram-na numa roda e atiraram as lanças. (2) Nisso, o hóspede, aquele que tinha sido purificado do assassinato, aquele chamado Adrasto,  errou o javali quando lançou a lança, mas acertou o filho de Creso, (3) que, acertado pela lança, concretizou a profecia do sonho do pai. Alguém partiu para dar a notícia do acontecimento a Creso e, quando chegou a Sardes,  contou-lhe a luta e o destino do filho.

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(1) Embora muito abalado com a morte do filho, Creso  sobretudo se indignou porque matara-lhe aquele que ele mesmo tinha purificado do assassinato. (2) Enojado com o infortúnio clamou terrivelmente por Zeus  Purificador, pedindo testemunho do quanto tinha sofrido pela mão do hóspede, chamava o mesmo deus pelos nomes de do Lar e Companheiro. Chamava-o por do Lar porque havia recebido o estrangeiro e sem ver nutria o assassino de seu filho; chama-o por Companheiro como o havia enviado de guardião aquele que descobriria ser o maior oponente.

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(1) Chegaram depois disso os lídios  carregando o cadáver, atrás deles seguia o assassino. Ele estava em pé frente ao cadáver quando se ofereceu à Creso,  estendendo-lhe os braços, mandando imolá-lo sobre o cadáver, falando de seu primeiro infortúnio, que tinha desgraçado a vida daquele que o purificara e que não havia porquê viver. (2) Creso ouviu e ouviu e se apiedou de Adrasto,  embora estivesse passando por tal sofrimento pessoal. Disse para ele: “Hóspede, eu já tive pena suficiente para você, posto que você condena a si próprio à morte. Não é você o responsável por esse meu sofrimento, na medida em que você agiu sem querer; antes, o culpado é algum dos deuses, que já há tempos me premeditou as coisas que ocorreriam. (3) Enfim Creso enterrou o seu próprio filho, como convinha. Adrasto filho de Górdias filho de Midas, por sua vez, que fora o assassino de seu próprio irmão e agora assassino do filho de quem o purificara, quando veio o silêncio das gentes em volta da tumba, percebendo-se o homem que carregava as maiores dores entre aqueles que conhecia, imolou-se a si próprio sobre a tumba.

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(1) Creso  manteve-se quieto por dois anos em imensa dor, tolhido do filho. Depois disso, o fato de que o controle exercido por Astiages  filho de Quiaxares  fora tomado por Ciro  filho de Cambises  e que a presença dos persas  crescia interrompeu o luto de Creso e ele se pôs a pensar se poderia, antes que os persas se tornassem grandes demais, tomar deles o poder enquanto crescia. (2) A partir dessa reflexão, pôs-se a sondar os oráculos dos gregos  e os da Líbia,  enviando missões para cada um dos lugares, alguns homens mandou ir a Delfos,  alguns para Abas  na Foceia  e outros para Dódona.  Alguns foram enviados para o oráculo de Anfiarau  e do Trofônio,  outros para as Brânquidas  na Milésia.  (3) Esses foram os oráculos gregos para o qual Creso enviou consultas. Quanto aos da Líbia, enviou outros homens para consultarem o oráculo de Ámmon.  Despachava gente para todo lado para sondar o que os oráculos pensavam, afim de que, se fosse provado que pensavam a verdade, enviasse-lhes então uma segunda consulta para perguntar se deveria se dedicar a atacar os persas.

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(1) Ele enviou os lídios  para sondar os oráculo dando as seguintes ordens. A partir do dia que começassem a viagem de Sardes,  contassem o tempo que passava até o centésimo dia, quando deviam consultar o oráculo perguntando-lhe o que havia de estar fazendo Creso,  filho de Aliates,  rei dos lídios e que o que quer que o oráculo profetizasse fosse anotado e entregue a ele. (2) Bom, aquilo que os oráculos profetizaram não foi relatado por ninguém, salvo que em Delfos,  quando os lídios chegaram correndo ao grande santuário para consultar o deus e interrogaram o que fora ordenado, a Pítia  disse o seguinte em versos hexamétricos: (3)

Conheço eu o número de grãos de areia e a medida do mar,
entendo o homem mudo e ao que quem não fala eu escuto.
Chega aos meus sentidos o odor da tartaruga de dura casca,
que agora é fervida no bronze junto às carnes de carneiros,
por debaixo da qual o bronze jaz e a qual está sobre o bronze.

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(1) Os lídios  anotaram o que a Pítia  profetizara e foram embora para Sardes.  Quando cada um daqueles que haviam sido enviados chegou trazendo os oráculos, Creso  ia desenrolando e examinando cada uma das anotações. Mas nenhuma delas o interessava, até que ele escutou o que fora trazido de Delfos. Logo fez preces e o recebeu de bom grado, certo de que o único oráculo era o de Delfos,  porque esse tinha adivinhado aquilo que ele fizera. (2) Isso porque quando ele enviou os consultantes para os oráculos, prestando atenção ao dia definido, considerou o seguinte: refletindo o que seria impossível de se descobrir ou adivinhar, decidiu picar uma tartaruga e um carneiro e cozinhá-los juntos, colocando-os em uma panela de bronze e cobrindo-a com uma tampa de bronze.

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Isso foi o que foi profetizado a Creso  pelo oráculo de Delfos.  Sobre a resposta dada pelo oráculo de Anfiarau  eu não tenho como falar o que foi revelado aos lídios  que haviam feito as coisas costumeiras de templo (porque nada nunca foi dito sobre isso), se não que o rei também considerou que esse era um oráculo que oferecera algo verdadeiro.

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(1) Depois disso, tentava agradar o deus de Delfos  com grandes sacrifícios. Sacrificou três milhares inteiros de rebanhos próprios para sacrifícios e queimou em uma pira imensa um amontoado de colchões cobertos de ouro e de prata e taças douradas e vestes e túnicas vermelhas, esperando que com isso conseguisse tornar o deus mais favorável. Ordenou também que todos os lídios  sacrificassem tudo aquilo que cada um deles tivesse. (2) Quando terminou com o sacrifício, derreteu um monte de ouro e dele forjou barras cujo lado mais longo media seis palmos e o mais curto três palmos com altura de um palmo, num total de cento e dezessete barras, quatro das quais eram de ouro refinado, pesando dois talentos e meio cada, e as demais barras eram de ouro branco, pesando dois talentos cada. (3) Fez também uma estátua de um leão em ouro refinado, pesando um total de dez talentos. Esse leão, quando o templo de Delfos  foi queimado, caiu de cima das barras de ouro (porque tinha sido apoiado sobre elas) e agora faz parte do tesouro dos coríntios,  pesando um total de seis talentos e meio, porque três talentos e meio dele derreteram.

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(1) Creso  deu ordens de enviar essas coisas a Delfos,  incluindo também o seguinte: duas crateras de tamanho imenso, uma de ouro e a outra de prata, das quais a dourada está ao lado direito da entrada do templo e a prateada do lado esquerdo. (2) Elas também foram levadas embora por causa do incêndio do templo e hoje a de ouro está no tesouro de Clazomenas,  pesando um total de oito talentos e meio e doze minas. A prateada hoje está no salão de entrada do templo e tem volume de seiscentas ânforas, tanto que a gente de Delfos a usa para misturar [vinho] durante as Teofanias. (3) Diz a gente de Delfos que são obra de Teodoro de Samos  e é o que penso, pois não me parece uma obra feita ao acaso. Além disso, enviou quatro jarros de prata, que agora estão no tesouro dos coríntios,  e dedicou dois aspersórios, um de ouro e um de prata. O de ouro tem uma inscrição dizendo [dos Lacedemônios]{.smallcaps},  e dizem ser uma dedicatória deles, mas estão errados. (4) Pois é realmente de Creso e um homem de Delfos que fez a inscrição para agradar os lacedemônios. Embora eu saiba quem foi, não vou relatar o nome. De fato a estatueta do rapaz de cujas mãos escorre a água é dos lacedemônios, no entanto não o são os dois aspersórios. (5) As várias outras dedicatórias que Creso enviou junto a essas não são inscritas, incluindo algumas vasilhas redondas de prata e uma estátua de ouro de uma mulher que a gente de Delfos diz ser uma imagem da padeira de Creso. Além disso tudo, Creso dedicou o colar e as faixas de sua própria esposa.

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Isso tudo foi o que enviou a Delfos,  enquanto ao oráculo de Anfiarau,  ao saber por ele de sua virtude e sua sorte, dedicou um escudo inteiro de ouro e uma lança inteira de ouro maciço, o cabo sendo de ouro tal como a ponta. Ambos ficavam no meu tempo em Tebas  no templo de Apolo Ismênio  dos Tebanos. 

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(1) Aos lídios  responsáveis por levar os tais presentes aos templos, Creso  ordenou que perguntassem aos oráculos se Creso devia enviar expedições contra os persas  e com qual exército de homens ele deveria se associar como amigo. (2) Quando chegaram a onde foram enviados, os lídios dedicaram as dedicatórias e consultaram os oráculos dizendo: “Creso, rei dos lídios e de outros povos, porque lhes considera serem os únicos oráculos entre a humanidade, presenteou-lhes com presentes dignos pelas suas previsões e agora lhes pergunta se devia enviar expedições contra os persas  e com qual exército de homens ele deveria se associar como aliado.” (3) Assim perguntaram, e a resposta de ambos os oráculos convergiu no mesmo ponto, profetizando a Creso que acaso enviasse expedições contra os Persas, ele derrubaria um grande reinado e lhe aconselharam se associar em amizade com aqueles que descobrisse serem os mais poderosos dos gregos. 

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(1) Em seguida, Creso  tomou conhecimento das profecias quando lhe foram relatadas e muito se alegrou com os oráculos, cheio de esperanças de que derrubaria o reinado de Ciro.  Enviou então novamente presentes a Delfos  em Pito:  descobriu quantos eram os délficos e presenteou-lhes com dois estateres de ouro para cada homem. (2) Em recompensa a essas coisas os délficos concederam a Creso e aos Lídios  preferência oracular, isenção de impostos e assentos privilegiados para eventos, além de concederem a possibilidade de se obter a cidadania délfica permanente a quem entre eles desejasse.

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(1) Depois de presentear os délficos,  Creso  fez uma terceira consulta, afinal, depois que recebera a resposta verdadeira do oráculo, passou a abusar dele. Dessa vez, perguntou em sua consulta se sua monarquia duraria muitos anos. (2) A Pítia  respondeu-lhe:

Só que quando uma mula entre os Medos  se tornar rei,
então, ó lídio de pés delicados, junto ao pedregoso Hermo
fuja, fuja e não fiques, nem te envergonhes por seres vil.

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(1) Creso  alegrou-se com a chagada dessas palavras mais do que com tudo mais, porque esperava que jamais uma mula reinaria sobre os Medos  no lugar de um homem e que assim ele e sua descendência jamais sairiam do poder. Então passou a dedicar-se a investigar qual dos gregos  seria o mais poderoso para ele se alinhar em amizade. (2) Descobriu com as investigações que os lacedemônios  e atenienses destacavam-se, um do povo dórico,  o outro jônico.  Aliás, ambos há muito já se distinguiam, antigamente como etnia pelásgica  e helênica.  Os primeiros jamais haviam saído daquela terra enquanto os outros eram muito viajados. (3) Durante o reinado de Deucalião  [os helenos] habitaram a Ftiótida,  no reinado de Doro filho de Heleno a terra ao junto ao monte Ossa  e ao monte Olimpo,  chamada de Histiótida.  Quando foram expulsos por Cadmo  de Histiótida, passaram a habitar o monte Pindo.  Então novamente mudaram-se para Druópida  e da Druópida chegaram enfim para o Peloponeso  e foram chamados dóricos.