Luvita Hieroglífico
Luvita e as línguas anatólicas⌗
O luvita hieroglífico é uma língua indo-europeia do ramo anatólico e do sub-ramo lúvico/luvita.
- Indo-Europeias
- Itálicas, Helênicas, Indo-Iranianas etc.
- Anatólicas
- Hitita
- Palaico
- Lídio
- Luvitas
- Lício A e Lício B (Mílio), Cário, Pisídio, Sidético
- Luvita
- Luvita
O luvita por sua vez é dividido de duas formas:
- Grafia:
- Hieroglífico
- Cuneiforme
- Dialeto/Período:
- Kizzuwatnian (unicamente cuneiforme)
- Imperial (misturado, principalmente hieroglífico)
- da idade do ferro (a maior parte do hieroglífico)
Esses dois dialetos de luvita são bem próximos, mas os dois sistemas de escrita são diferentes o suficiente para dificultar uma explicação decente da relação entre eles.
Sobre datas, o luvita é especialmente importante por ter atestações tanto no primeiro quanto no segundo milênio AEC. As primeiras atestações de uso como sistema de escrita dos hieroglifos luvitas se dá em selos oficiais do século 14 a 13 AEC. Os selos são por vezes “bilíngues” com a versão do nome em cuneiforme junto do nome em hieroglifos:
As inscrições se diversificam com o fim do império hitita em 1200 AEC e os estados “neo-hititas” por qualquer razão mantém o uso dos hieroglifos autóctones e não da escrita cuneiforme, pelo menos até 700 AEC quando esses estados passam a ser integrados a outros (Lídia, Média, Pérsia).
Os hieróglifos⌗
A parte mais divertida do luvita são os grafemas. Nós ainda não sabemos bem como ler uma boa parte dos sinais, mas os essenciais para entender as inscrições já são compreendidos, especialmente por conta dos avanços de J.D. Hawkings, A.Morpurgo Davies e G.Neumann que em 1973 resolveram alguns erros das leituras do E. Laroche.
Os sinais são nomeados com um índice *1,*2 … *410 etc e podem ter três valores não excludentes entre si:
- Logográfico: equivalendo a uma palavra inteira (transliterado em latim)
- Silabográfico: equivalente a uma sílaba
- Determinativo semântico: classificando semanticamente uma palavra antes ou depois dela, usando o sentido logográfico.
Assim, os sinais abaixo podem ser lidos como “boi”, “mu” ou “a palavra a seguir é bovina” e “águia”, “ara”, “ari”, “a palavra a seguir diz sobre algo próximo de uma ave”. (As letras ficam minúsculas com essa fonte :x)
𔑺 105 BOS mu
𔒟133 AQUILA/AVIS4 ara/i
Silabogramas⌗
Os silabogramas podem representar as sequências V
, CV
e CVCV
:
𔗷 /a/
𔑺 /mu/
𔕆 /hara/i/
As vogais em sequências CV
e CVCV
podem ser apagadas para produzir encontros consonantais, tal como no cuneiforme, então para dizer “fortaleza.NOM.SG.C”, harnisas, o escriba poderia escrever: “ha-ra/i-ni-sà-sa” ou “hara/i-ni-sa-sa” etc.
Se dois hieroglifos tem o mesmo valor (ou nós não sabemos ainda qual a diferença entre eles), eles são numerados de 1 a X, geralmente do mais frequente pro menos / mais novo.
Ao invés de escrever sa1
, escreve-se sa
, ao invés de sa2
, sá
e sa3
= sà
.
Daí em diante, numera-se.
Determinativos⌗
Translitera-se 𔑺
como (BOS)
na função de determinativo.
Por vezes o texto em luvita escreve determinativos entre uma espécie de parênteses: 𔗎𔔉𔗏
= ("CASTRUM")
.
Determinativos sobre tipo de pessoa são escritos em geral antes do nome e os de localidade geográfica depois.
De resto, eles podem vir antes ou depois.
Logogramas⌗
Não há muita ciência, eles podem vir no lugar de uma palavra inteira ou de um pedaço dela, seguidos de silabogramas.
São transcritos em maiúsculas: 𔑺
= BOS
.
Quando não sabemos o valor de um logograma (ou qualquer outro sinal), transcreve-se com o número dele: 𔗱
= *444
.
Como escrever fortaleza⌗
Na imagem seguinte, incluo algumas maneiras possíveis para escrever a mesma palavra: harnisas fortaleza.NOM.SG.C:
A primeira é simples, o logograma CASTRUM
sozinho.
A segunda é o logograma CASTRUM
mais um silabograma para marcar o caso nominativo
: CASTRUM-sa
= harnisa-s
.
No terceiro se inclui o silabograma sà
para dar um pouco mais de informação sobre o som da palavra representada pelo logograma CASTRUM
: CASTRUM-sà-sa
= harni-sa-s
.
O escriba poderia usar CASTRUM
como determinativo, com ou sem aspas e escrever harnisas por completo: (CASTRUM)hara/i-ní-sà-sa
= har-ni-sa-s
.
E por fim, o escriba poderia não escrever o logograma e usar apenas silabogramas.
Como boa parte dos silabogramas servem para escrever logogramas também, a leitura do texto depende um pouco de interpretação, mas via de regra não tem muito erro, uma das opções vai acabar sendo absurda: eu não leria o antepenúltimo exemplo como fortaleza roda+ra/i rio cervo
e nenhum dos outros intermediários.
Direção e ordem dos sinais⌗
Essa é a pior parte. O texto é escrito em boustrophedon, o que significa que se uma linha vai da direita para a esquerda, a próxima vai da esquerda para a direita e assim sucessivamente. Em luvita, o texto costuma começar da direita para a esquerda, mas a regra de ouro é ver se algum grafema assimétrico (especialmente carinhas) está voltada na direção que você pretende ler: leia de frente pros rostinhos. A ordem de sinais é mais complicada. Via de regra ela segue a direção da linha, com alguns caracteres postos um sobre o outro, mas por vezes o escriba vai achar mais bonito reorganizar a ordem (algo normal em escrita hieroglífica). É mais um exercício de raciocínio linguístico bastante irritante quando você não tem vocabulário, e atrapalha a interpretação de algumas inscrições até hoje.
Exemplo de texto: HAMA 2⌗
Basicamente estou seguindo a análise de Payne (2010:53ff), com algumas modificações na notação e na interpretação de sintática. Infelizmente ainda não consegui fazer a fonte funcionar direito e mesmo que conseguisse, o bloco UNICODE pra Hieroglifos anatólicos é bem capenga e desligado do que realmente ocorre nas inscrições. A inscrição Hama 2 faz parte de um conjunto maior (Hama 1-4), todas do reinado de Urhilina filho de Uratamis, portanto foram inscritas ao longo do século IX AEC. Essa inscrição é particularmente importante para a área porque foi uma das primeiras a serem escavadas e documentadas e ter uma menção ao território bíblico de Hamath na palavra hoje em dia lida imatuwani. Isso atrasou um pouco o desvendamento do sistema de escrita, porque tentava-se encaixar um ha- no lugar do i- inicial e acabava deixando muitas formas com -i- obscuras e incomparáveis às demais línguas indo-europeias.
O texto contém 3 linhas com os caracteres em relevo, começando no topo da direita para esquerda e seguindo o padrão de bustropedon. As quatro “orações” são divididas assim por causa da partícula quotativa wa 𔗬 que aparece em segunda posição (~ posição de Wackernagel ~). Talvez uma das partes mais interessantes seja na 3ª oração em que o sujeito da oração relativa (lakawanis hapatais) aparece antes do pronome relativo (kwan), algo muito frequente em luvita e que ninguém entende muito bem.
§1⌗
{𔐀 𔖻} {𔖙 𔖱 𔐬 𔖻} {𔑻 𔖱 𔗒 𔔹 𔐤 𔗔} {𔐰 𔗐 𔖪 𔗔} {𔓯 𔒅 𔕬 𔗬 𔗐} {𔔆 𔐑}
EGO=mi MAGNUS+ra/i-tà-mi-sa u+ra/i-hi-li-na-sa (INFANS)ni-za-sa i-ma-tú-wa/i-ni (REGIO).REX
amu=mi uratami-s urhilina-s niza-s imatu-wan-i *hantawati-s
pron(1SG.NOM)-REFL Uratamis-N.SG.C Urhilinas-G.SG.C filho-N.SG.C imatu-ETH-MUT.N.E rei-N.SG.C
‘Eu sou Uratami, filho de Urhilina, rei Hamatita.’
- amu=mi: Embora se anote =mi como um reflexivo, é bem comum encontrá-lo junto ao pronome amu “eu” na abertura de textos, principalmente em frases de introdução “eu sou X”. Nesses contextos, também é comum encontrar uma forma capitalizada do grafema
EGO
𔐀. Algumas capitalizações deEGO
são muito bonitas, como a de Karkamiš A1B, contando com um retrato da esposa de Suhi II, cujo nome só sabemos terminar com -is e poder ser abreviado comBONUS
. - MAGNUS+ra/i-tà-mi-sa: nominativo do nome Uratamis, que costumava ser designado com o logograma
grande
. - imatuwani: adjetivo de etnia formado com -wan- e com mutação de tema em -a para -i. Eu não fui convencido ainda de que alguém saiba o que é essa mutação, mas muitos adjetivos que você esperaria terminarem em -a terminam em -i.
- (REGIO).REX: “rei da região”. É bem comum em luvita nós não sabermos algumas palavras básicas como mãe, filha etc, porque essas palavras aparecem apenas em logogramas. Um exemplo é (REGIO).REX que sabemos significar “rei”, mas cuja forma nós só podemos imaginar reconstruindo a partir de outras línguas.
§2⌗
{𔗷 𔗬} {𔐓 𔑿} {𔔘 𔖻 𔓷} {𔖪 𔗷} {𔗎𔔉𔗏 𔕆 𔗐 𔑷 𔖪}
a-wa/i á-mu AEDIFICARE+MI-ha za-´ ('CASTRUM')ha+ra/i-ni-sà-za
a=wa amu tama-ha za harnisan--za
CONJ=QPT pron(1SG.NOM) construir-1SG.PRT pron(ACC.SG.N) fortaleza-ACC.SG.N=NPT
‘E eu construi esta fortaleza aqui, (…)’
§3⌗
{𔓊 𔗧 𔗬 𔗐 𔑷 𔓷 𔗬𔔆} {𔓳 𔔆 𔐬 𔓯 𔑷} {𔕰 𔖪} {𔓯 𔖩 𔓯 𔐬}
la-ka-wa/i-ni-sà-ha-wa/i(REGIO) FLUMEN.REGIO-tà-i-sà REL-za i-zi-i-tà
laka-wan-i-s=ha=wa hapatai-s kwa-n=za izi-ta
Laka-ETHN-MUT-N.SG.C=CPT=QPT várzea-N.SG.C rel.-A.SG.N=NPT fazer-3SG.PRT
‘(…) que os Laqueus da várzea fizeram (…)’
- lakawanis=ha=wa hapatais: literalmente “o povoado laqueu da várzea”
§4⌗
{𔗷 𔐞 𔓷 𔗬} {𔗐 𔗳 𔒅 𔗔 𔔆}
a-tá-ha-wa/i ni-ki-ma-sa(REGIO)
anda=ha=wa nikima-s
prep=CONJ=QPT {(região de )Nikima-N.SG.C}
‘(…) e dentro está a terra de Nikima.’