Hino à Aurora - R̥gveda VII.76
Hino relativamente curto da série de hinos à Aurora dos Vasiṣṭhas, bem estruturado e com algumas charadas / jogos de interpretação. As estrofes 3 e 5 emolduram o centro do hino na estrofe 4 com a repetição de versos abertos por ámardhanto vásubhir ‘imaculados, com os bons …’. Como de costume, o começo do poema parece ser mais bem ajambrado formalmente, enquanto a segunda metade contém os pedidos mais específicos do poeta. Um dos tópicos comuns da poesia védica aparece bem: o poder constituidor de mundo dos poetas devido à sua proximidade com os deuses e a verdade, sobretudo no que diz respeito aos poetas antigos que primeiro tiveram acesso ao divino.
Texto e tradução⌗
a
úd u jyótir amŕ̥taṁ viśvájanyaṁ
b
viśvā́naraḥ savitā́ devó aśret
c
krátvā devā́nām ajaniṣṭa cákṣur
d
āvír akar bhúvanaṁ víśvam uṣā́ḥ ||1||No alto sua luz imortal e de toda gente
o deus Savitar de todos os homens espalhou.
Pela [sua] vontade dos deuses o olho nasceu.
Fez revelar tudo que existe a Aurora. ||1||
a
prá me pánthā devayā́nā adr̥śrann
b
ámardhanto vásubhir íṣkr̥tāsaḥ
c
ábhūd u ketúr uṣásaḥ purástāt
d
pratīcy ā́gād ádhi harmyébhyaḥ ||2||A mim se fizeram ver os caminhos aos deuses,
imaculados e pelos bons ordenados.
Veio o raio da Aurora desde o nascente,
Rumo ao poente [ela] chegou de suas moradas. ||2||
a
tā́nī́d áhāni bahulā́ny āsan
b
yā́ prācī́nam úditā sū́ryasya
c
yátaḥ pári jārá ivācárantī-
d
úṣo dadr̥kṣé ná púnar yatī́va ||3||Estes foram os numerosos dias nos quais
ao subir do sol, na direção do que mira ao oriente,
como a que então vai rumo ao amante e não retorna,
ó Aurora, te fizeste visível. ||3||
a
tá íd devā́nāṁ sadhamā́da āsann
b
r̥tā́vānaḥ kaváyaḥ pūrvyā́saḥ
c
gūḷháṁ jyótiḥ pitáro ánv avindan
d
satyámantrā ajanayann uṣā́sam ||4||Estes foram os convivas dos deuses,
embuídos da verdade poetas de outrora.
A luz oculta os pais descobriram,
com versos verdadeiros geraram a Aurora. ||4||
a
samāná ūrvé ádhi sáṁgatāsaḥ
b
sáṁ jānate ná yatante mithás té
c
té devā́nāṁ ná minanti vratā́ni-
d
ámardhanto vásubhir yā́damānāḥ ||5||Em um mesmo curral comum reunidos,
concordes eles não conflitam entre si,
não fazem pouco dos comandos dos deuses,
imaculados e bem unidos aos bons. ||5||
a
práti tvā stómair īḷate vásiṣṭhāḥ-
b
uṣarbúdhaḥ subhage tuṣṭuvā́ṁsaḥ
c
gávāṁ netrī́ vā́japatnī na ucha-
d
-úṣaḥ sujāte prathamā́ jarasva ||6||Repondendo a ti, os Vasiṣṭhas invocam com preces,
acordam na alvorada e homenageiam, ó de boa porção!
Condutora do gado, senhora dos prêmios, raia a nós,
ó bem nascida Aurora, sê a primeira a despertar! ||6||
a
eṣā́ netrī́ rā́dhasaḥ sūnŕ̥tānām
b
uṣā́ uchántī ribhyate vásiṣṭhaiḥ
c
dīrghaśrútaṁ rayím asmé dádhānā
d
yūyám pāta svastíbhiḥ sádā naḥ ||7||É ela a condutora dos presentes, das prodigalidades,
a Aurora ao raiar é crepitada pelos Vasiṣṭhas,
a riqueza da longa fama em nós ela estabelece.
Proteje-nos sempre com suas bençãos!
Comentários e notas⌗
- Estrofe 1
- 1ab … viśvájanyaṁ | viśvā́naraḥ … ‘de toda gente. | de todos homens’: repetição de compostos com viśvá- ‘todos, todas, tudo’ na quebra do verso. Vide também 1d bhúvanaṁ víśvam ‘tudo que é, que há; todas as criaturas’, com sentido similar a viśvájanya- ‘toda gente’.
- 1c krátvā ‘pela vontade’: pronomes possessivos não costumam aparecer de maneira explícita nos hinos védicos e costuma-se incluí-los para facilitar a compreensão dos versos. Neste caso, poder-se-ia suplementar ‘sua’ que se refere ambiguamente a Savitar (m.) e a Aurora (f.), sendo a primeira opção mais natural, dado que Savitar é responsável por impelir o sol, aqui mencionado indiretamente como devā́nām … cákṣur ‘olho dos deuses’.
- 1d bhúvanaṁ víśvam ‘tudo que existe’: talvez possa ser interpretado como ‘o mundo inteiro’. A palavra bhúvana por vezes tem sentido próximo ao português ‘ser’ nas expressões ‘ser vivo, ser animado, ser inanimado’.
- Estrofe 2
- 2b ámardhanto vásubhir íṣkr̥tāsaḥ ‘imaculados e ordenados pelos bons’: A sequência ámardhanto vásubhir ‘imaculados, pelos bons X’ será repetido no verso 5d. Ambos os versos estão equidistantes do meio do poema, de modo que a repetição ocorre espelhada em relação ao meio. Isso sugere uma construção com ômphalos ‘umbigo’, frequente nos hinos védicos e em outras tradições poéticas indoeuropeias antigas. Além disso, em vásubhir íṣkr̥tāsaḥ ‘ordenados pelos bons’, o poeta inicia algo como uma charada neste ponto, já que não é claro quem seriam ‘os bons’ que teriam ordenado os caminhos. A continuação do poema tornará claro. A repetição da fórmula que mencionamos terá servido de pista para os espectadores mais atentos que a resposta tinha sido dada.
- 2cd … purástāt | pratīcy … ‘[vindo] de leste | [voltada] a oeste’: termos contrastivos justapostos entre o fim e começo de versos que formam um dístico.
- 2d: novamente, é difícil não suplementar o sujeito da oração sem produzir o sentido de que ‘o sinal da Aurora’ é quem chegou.
- Estrofe 3: O termo prācī́nam ‘que se volta / mira ao leste’ deve fazer referência é ao sacrifício realizado na mesma ocasião da recitação do hino. A deusa Aurora viria todos os dias, por isso numerosos, para participar do ritual tão longo nascesse o sol, vindo em direção ao sacrifício voltado cara a cara para ela. A Aurora chega tal como uma mulher que vai em direção ao amante e que não retorna (à sua casa). Uma interpretação possível seria que o caminho que a Aurora faz é unidirecional: o raiar do dia não vem, chega e recua, mas vem, passa e retorna.
- Estrofe 4:
- 4a devā́nāṁ sadhamā́da ‘convivas’: literalmente ‘aqueles que bebem junto aos deuses’.
- 4d satyámantrā ‘versos verdadeiros’: o sentido aqui talvez seja ‘versos que se tornam / manifestam a verdade / realidade’, dado que por meio destes versos que os poetas antigos fizeram nascer a Aurora.
- Estrofe 7:
- 7b ribhyate ‘é crepitada’: possível metáfora significando ‘é cantada, é celebrada’, fazendo menção ao som crepitante da voz dos cantores védicos.